As criptomoedas ou moedas digitais, hoje famosas por seu maior expoente, o Bitcoin, representam uma das mais drásticas mudanças ocorridas recentemente nas relações financeiras e negociais. O ineditismo do tema descortina uma série de oportunidades e questionamentos, especialmente na esfera jurídica. Uma pergunta interessante diz respeito à possibilidade (e os efeitos daí decorrentes) de utilização do Bitcoin (ou qualquer outra criptomoeda) como moeda de pagamento em uma operação societária.
Antes de adentrar na análise dessa questão, façamos um breve apanhado geral acerca do assunto. As criptomoedas foram idealizadas para serem transacionadas sem intervenção estatal ou de terceiros agentes autorizados. Isto é, sua criação e operação baseiam-se na confiança entre os agentes, sem a existência de um intermediário. Tal estrutura é viabilizada por uma rede colaborativa denominada blockchain onde fica registrado o histórico de todas as transações realizadas pelas criptomoedas, a exemplo da operação de um livro razão, evitando-se, assim, a ocorrência de duplicidade ou inconsistências em transações envolvendo criptomoedas.
É verdade que definir a natureza jurídica das criptomoedas não é uma tarefa simples. Embora não haja regramento específico sobre o tema, algumas categorizações vêm à tona: (i) uma moeda propriamente dita; (ii) um valor mobiliário; (iii) um bem incorpóreo/intangível; (iv) um arranjo de pagamento.
A despeito do nome que lhe foi atribuído (“criptomoeda”), uma análise mais aprofundada nos permite afirmar que o Bitcoin não pode ser classificado juridicamente como moeda nos termos da Lei 9.069/95 e do Decreto-Lei 857/69. Além disso, segundo o STF (Recurso Extraordinário 478.410/SP), a moeda possui duas características essenciais e intrínsecas: o curso legal e o curso forçado. O primeiro requisito conecta a moeda ao conceito de exclusividade na circulação, caracterizando-a como meio de pagamento e garantindo, por ricochete, o cumprimento do segundo requisito — o curso forçado —, reconhecido como a impossibilidade de conversão do valor monetário em outro valor, de outra espécie. Analisados em conjunto, esses requisitos outorgam à moeda o chamado “efeito liberatório”.
No âmbito das criptomoedas, não há curso forçado, muito menos curso legal em sua circulação. Sua emissão, como já exposto, independe da chancela da autoridade estatal, razão pela qual não nos parece correto classificá-las como moedas.
Outra possibilidade diz respeito a sua classificação como valor mobiliário. Nesse sentido, é entendimento da CVM, em nota publicada no dia 11 de outubro de 2017, que as criptomoedas, em alguns casos específicos, estariam abrangidas pelo conceito de valor mobiliário e, consequentemente, sujeitas à Lei 6.385/76. Esse enquadramento se daria no caso de determinadas ICOs (Initial Coin Offerings), reconhecidas como uma operação destinada a captar recursos para emissão de criptomoedas.
Entendemos que o enquadramento proposto pela CVM depende de as criptomoedas preencherem os requisitos estabelecidos no inciso IX do artigo 2º da referida lei. Isto é, para serem caracterizadas como valores mobiliários, as criptomoedas deveriam ser ofertadas publicamente, gerando direito de participação, remuneração ou de parceria, bem como serem decorrentes de esforço do empreendedor ou de terceiros. Vê-se que, em regra e nas estruturas mais simples e diretas de operações com criptomoedas (troca direta e simples de tais ativos por outros, incluindo moeda), não existe empreendimento do qual o adquirente irá participar, de modo que, em geral, não há como inserí-las no escopo da Lei 6.385/76. Exceção a tal caso são algumas hipóteses de tokenização de ativos, em que se pode estar diante de um contrato de investimento coletivo, ofertado publicamente e pelo meio digital. Neste ponto, contudo, é importante atentar para eventuais sistemas de fraudes, valendo-se da emissão de supostas criptomoedas em troca de investimentos. Para estes casos, é necessário avaliar com cuidado se a criptomoeda em questão realmente oferece utilidade ou valor econômico. Caso contrário, estar-se-á diante de possível fraude financeira.
Mais correto, então, seria qualificar as criptomoedas como Bens Incorpóreos. Criptomoedas, nesse sentido, seriam bens imateriais com valor econômico agregado e reconhecido pelo mercado, utilizados em operações de permuta por outros bens, por exemplo. Sua operacionalização em quaisquer negócios seria sempre assumindo a função de bem e não de moeda. Sua qualificação como Bem Incorpóreo permite definir com maior clareza sua função econômica e, por conseguinte, sua utilidade nas operações societárias. A iniciar pelo processo de aquisição de ações ou quotas, sua função não seria muito distinta daquela do dinheiro. No entanto, existiriam dúvidas quanto a sua real classificação no âmbito da operação: estaríamos diante de um contrato de permuta ou de um contrato de compra e venda? Tal distinção se faz necessária, visto que o ponto de corte entre as definições destes tipos contratuais se dá justamente pelo fato de o contrato de compra e venda envolver dinheiro, enquanto que o contrato de permuta estaria relacionado apenas à troca de bens.
Nesse sentido, diante do atual arcabouço jurídico, a classificação correta é a caracterização de contrato de permuta. Isso porque, no contrato de compra e venda, a aquisição das ações/quotas se daria apenas em contrapartida pela entrega de dinheiro. Como já exposto, criptomoedas não são moeda, e, portanto, não seria possível envolvê-las em um contrato de compra e venda, pelo menos no papel de moeda da operação. De mais a mais, o artigo 315 do Código Civil prevê como obrigatório o pagamento em moeda corrente, sem contar a previsão do Decreto-Lei 857/69, que prevê o curso legal da moeda vigente em território brasileiro.
No entanto, vale destacar que, conforme o artigo 533 do Código Civil, tanto a permuta quanto a compra e venda possuem regramentos muito semelhantes. Do ponto de vista societário e contratual, não vemos óbice para que determinado sócio ou acionista permute sua participação societária em troca de criptomoedas. Estar-se-ia, no caso, trocando-se ações/quotas por outro bem.
Outra possível utilização das criptomoedas em operações societárias diz respeito à eventual integralização do capital social de determinada sociedade. Conforme o artigo 7º da Lei 6.404/76 e o artigo 997, inciso III do Código Civil, o capital social da sociedade deverá ser expresso em moeda corrente nacional (na redação da Lei 6.404/76). Desse modo, o capital social deve ser expresso em Reais, moeda oficial do Brasil. Contudo, não há vedação para integralização deste capital com bens, desde que possam ser avaliados e tenham uma expressão/valor correspondente na moeda Real. Assim, do mesmo modo que não se evidenciam impedimentos para integralização do capital social via bens imateriais como marcas, patentes, softwares, dentre outros bens intangíveis, também não existiria impedimento para fazê-lo por meio de criptomoedas.
Essa integralização, contudo, depende do cumprimento de uma série de requisitos e procedimentos legais. Em primeiro lugar, em sociedades anônimas, os bens sujeitos à integralização devem ser devidamente avaliados por três peritos ou por empresa especializada. Após avaliação, cabe aos demais acionistas aprovar o laudo emitido em assembleia. Analisando este quadro e considerando que criptomoedas ainda estão sujeitas a bruscas variações “cambiais”, o consenso entre acionistas, peritos e subscritor(es) quanto à avaliação de valor dos bens será, provavelmente, objeto de discussões. Uma alternativa é prever nos atos constitutivos das sociedades parâmetros para sua avalição, remediando eventuais discussões.
Além disso, o ativo intangível da sociedade, conforme o artigo 179, inciso VI, da Lei das Sociedades por Ações, deverá compreender bens incorpóreos “desde que destinados à manutenção da companhia ou exercidos com essa finalidade, inclusive o fundo de comércio adquirido”. Tal norma, inclusive, se encontra em conformidade com o disposto no artigo 117, alínea “h” da mesma lei, que consagra a necessidade de realização de bens em conformidade com o objeto social da companhia. Deste modo, a integralização de capital em criptomoedas seria apenas permitida quando compatível com o objeto social da sociedade, o que pode representar uma limitação na utilização dessa forma de integralização.
Outro ponto a ser levantado seria o eventual aporte de capital por sociedade estrangeira baseado em criptomoedas. Nesse caso, a operacionalização do aporte, de regra, deveria passar por registro perante o Banco Central, o qual, até o momento, não possui definição. Apesar disso, a operacionalização do investimento poderia se enquadrar no disposto nos artigos 36 e 37 da Circular 3.689, de 16/12/2013 do Banco Central do Brasil, que versam, respectivamente, sobre o investimento estrangeiro direto por conferência de bens, tangíveis ou intangíveis, assim como a conversão em investimento estrangeiro direto.
Por fim, cumpre registrar a existência de corrente que visa enquadrar as criptomoedas como arranjos de pagamento, tal qual programas de milhagens aéreas. Em que pese o Banco Central já tenha se manifestado no sentido contrário (Comunicado 25.306, de 16 de fevereiro de 2014), cabe o registro de certo esforço legislativo para assim classificá-las, por meio de Projeto de Lei 2.303/2015, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados.
Ultrapassadas estas questões, mostra-se, portanto, viável a utilização e operacionalização de criptomoedas em operações de alienação de participações societárias entre residentes no Brasil e entre não residentes, bem como também possível a integralização de capital com aporte de criptomoedas, respeitadas as suas peculiaridades.
Fonte: ConJur