Com 134 mortos confirmados até o momento e 199 desaparecidos, a tragédia causada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho/MG entrará para a história dos acidentes de trabalho no Brasil. O fato será, ainda, evento responsável por reacender a polêmica em torno de controversos dispositivos da reforma trabalhista.
Recentemente, a Anamatra ajuizou ADIn (6.050) no Supremo para questionar dispositivos da CLT, introduzidos pela reforma trabalhista, que fixam limites vinculados ao salário do trabalhador para o arbitramento de indenização por danos extrapatrimoniais decorrentes da relação de trabalho.
A Anamatra defende que as normas introduzidas na CLT restringem a atuação do Poder Judiciário nos casos de dano moral decorrente de relação de trabalho “ao impedir que o órgão judicante fixe em favor do trabalhador a indenização ampla eventualmente aplicável ao caso”. A associação exemplifica ainda que a indenização decorrente de um mesmo dano moral – como a tetraplegia de um servente ou de um diretor de empresa, por exemplo – passam a ter valores diferentes em razão do salário de cada ofendido.
Agora, a recente tragédia em Brumadinho reforça a urgência de se resolver impasses relativos aos valores indenizatórios em casos de acidente de trabalho.
O advogado Leonardo Amarante, do escritório Leonardo Amarante Advogados Associados, acredita que em virtude da “proporção gigantesca da tragédia”, assim como a grande comoção gerada a nível mundial, o STF possa vir a agilizar o julgamento da ADIn, até mesmo para evitar decisões judiciais discrepantes. Segundo o advogado, a expectativa é que o Supremo mantenha entendimento no sentido de que a limitação para danos morais nesses casos é inconstitucional.
“Até porque, caso prevaleça o que está no referido dispositivo, teremos a absurda situação em que duas pessoas, com salários diferentes, que faleceram em decorrência do mesmo evento, terão indenizações diferentes, cujos valores serão arbitrados levando-se em consideração exclusivamente o seu salário”, afirma.
A urgência da questão levantada na ADIn também é reforçada pelo ministro aposentado do TST Almir Pazzianotto Pinto. Segundo ele, “faz-se necessário, nas atuais circunstâncias, que o Supremo Tribunal Federal decida, como guarda da Constituição, com rapidez a relevante questão relacionada à indenização por danos materiais e morais em acidentes do trabalho”.
Ajuizada em 18 de dezembro, a ADIn 6.050 foi distribuída à relatoria do ministro Gilmar Mendes, que adotou o rito do artigo 12 da lei 9.868/99 ao considerar a relevância da matéria.
Controvérsias
O desembargador do TRT da 15ª região Jorge Souto Maior afirma que, com a tragédia da Vale em Brumadinho, a atenção sobre o tema tomou o cenário nacional, “multiplicando-se os sujeitos aflitos ou meramente curiosos com o resultado que o STF dará à questão”, motivo pelo qual a “grande mídia”, agora, está se preocupando com ele. “Enquanto atingia ‘somente’ os trabalhadores, o tema não incomodava”, afirma.
Segundo o magistrado, os efeitos da tragédia “escancaram as contradições e a encruzilhada jurídica desenvolvida” em virtude da reforma trabalhista, seja em questões envolvendo a parametrização de indenizações em caso de morte e em outras situações abrangidas na relação de trabalho.
“Já há quem, outrora ardoroso defensor da “reforma” e que criticava a postura de juízes que se recusassem a aplicar a literalidade estrita da lei da reforma para tentar se safar de sua responsabilidade histórica, esteja dizendo que como nos artigos da lei da ‘reforma’ não está relacionada a palavra ‘vida’, não se teria feito uma parametrização para o evento morte. Mas, bem se sabe que não foi essa a intenção daqueles que promoveram as múltiplas alterações na CLT por meio da lei 13.467/17.”
Assim, em virtude da relevância do tema e de outras questões envolvendo direitos constitucionais dos trabalhadores, Souto Maior entende que a questão precisa ser tratada rapidamente.
“Quero crer que passos sejam dados na direção do efetivo respeito aos direitos constitucionais (Sociais e Humanos) dessas pessoas e que isso deve ser feito rapidamente, até porque se atingiu o ponto em que: se pautar, o bicho pega; se não pautar, o bicho come! Com a palavra o Supremo Tribunal Federal…”
Valor da vida
Ao abordar os aspectos econômicos que devem ser considerados para o arbitramento das indenizações no caso, o desembargador pontua que as indenizações devem abranger os aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais. Esses valores, no entanto, jamais serão suficientes para se conseguir eliminar os sofrimentos experimentados. “São reparações que apenas os minimizam. Porém, não podem ser economicamente reduzidas, sob pena de se causar nas vítimas um novo dano pela desconsideração da sua dor”, afirma.
Em relação aos valores das condenações, o ministro Almir Pazzianotto pontua que os artigos questionados na ADIn (incisos I, II, III e IV do artigo 223-G) determinam indenização de até três vezes o último salário contratual do ofendido em casos de natureza leve, e em até cinquenta vezes o último salário em ofensas de natureza gravíssima (em caso de invalidez total e permanente ou morte).
“Ficará a cargo de o juiz decidir se a ofensa foi leve, medianamente leve ou grave. Em caso de morte não haverá margem para dúvida ou interpretação.”
Segundo o ministro, “as decisões judiciais não devem fechar os olhos aos nomes que se encontram na capa do processo”, a fim de que as indenizações sejam arbitradas em conformidade com a capacidade econômica daqueles que são objetivamente responsáveis no caso.
“Entre a Cia. Vale do Rio Doce e o modesto serralheiro de fundo de quintal, ambos acusados de, por ação ou omissão, darem causa a acidente do trabalho do qual resultou a invalidez ou morte da vítima, as distâncias, em todas as direções, são incomensuráveis. Para a Cia. Vale do Rio Doce condenação de indenizar no valor de R$ 100 mil reais é irrelevante. Para o serralheiro será insuportável. A reparação à vítima ou a sua família não deve ser feita ao preço do desaparecimento do pequeno negócio, com a condenação à miséria do infeliz proprietário”, afirma o ministro.
O desembargador Jorge Souto Maior aborda a questão da indenização em relação aos funcionários terceirizados, e chama atenção para os arbitramentos no caso.
“No aspecto do cálculo da indenização aos trabalhadores terceirizados, a consideração do potencial econômico do empregador pode representar a fixação de indenizações inferiores pelo mesmo fato danoso, já que as empresas de trabalho terceirizado não têm o mesmo capital que a Vale possui.”
Apesar de ponderar a relevância do caso ocorrido em Brumadinho, Souto Maior salienta que tragédias envolvendo as relações de trabalho no país são comuns, e que há de se buscar soluções para casos que vitimem trabalhadores no país.
“Há uma enorme tragédia cotidiana nas relações de trabalho no Brasil. O acidente de trabalho da Vale em Brumadinho (que, para muitos, é bem mais que um acidente) é a expressão nítida dessa realidade. Trata-se de ‘uma espécie de evento concentrado e acelerado da mesma tragédia que, de modo espalhado e a conta-gotas, acomete a milhares de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil ao longo do ano’¹. Precisamos, enfim, tirar lições com os erros e parar de tentar justificá-los, porque isso apenas favorece que a tragédia humana continue nos acompanhando, impunemente. Não agindo assim, então, devemos, ao menos, nos perguntar: quantas mais tragédias como a da Vale em Brumadinho queremos?”
Fonte: Migalhas